segunda-feira, 8 de março de 2010

TEXTO PEDAGÓGICO

 O  rei  leão,  nobre  cavalheiro,  resolveu  certa  vez
que  nenhum  de  seus súditos haveria de morrer na 
ignorância. Que bem maior  que a  educação poderia 
existir? Convocou o urubu, impecavelmente  trajado
em sua beca doutoral, companheiro de  preferências
e de churrascos,  para assumir  a  responsabilidade 
de organizar e  redigir a  cruzada do saber.  Que  os
bichos precisavam de educação, não havia  dúvidas. 
O problema primeiro era o que ensinar.  Questão  de
currículo: estabelecer as coisas sobre  as  quais os
mestres iriam  falar e  os  discipulos  iriam aprender.
Parece que havia acordo  entre os  participantes do
grupo de trabalho, todos  urubus, é claro: os  pensa-
mentos de urubus eram os mais verdadeiros; o andar
de urubu  era o  mais  elegante;  as  preferências  de
nariz e de língua dos urubus eram as mais adequadas
para  uma  saude  perfeita; a cor  dos  urubus  era  a
mais tranquilizante; o canto  dos  urubus era o mais
bonito. Em suma: o que é bom para os urubus é  bom
para o resto dos  bichos.  E  assim  organizaram os 
currículos,  com  todo  o rigor  e precisão  que as úl-
timas  conquistas  da  didática e  da  psicologia  da
aprendizagem podiam merecer. Elaboraram-se    siste-
mas sofisticados  de  avaliação para teste  da aprendi-
zagem. Os futuros mestres foram informados da  impor-
tância do diálogo para que o ensino fosse mais eficaz
e   chegavam  mesmo, vez  por outra ,  a  citar  Martin
Buber. Isto  tudo  sem  falar  na  parafernália  tecnoló-
gica  que se importou do exterior,  máquinas  sofisti-
cadas que podiam repetir as aulas à vontade para os
mais  burrinhos, e  fascinantes  circuitos  de televisão
Ah!  Que  beleza. Tudo  aquilo  dava  uma    deliciosa
impressão de progresso e eficiência e os repórteres
não se cansavam de fotografar as luzinhas piscantes
das máquinas que haveriam de produzir o saber, como
uma linha de montagem produz um automóvel.  Questão
de organização, questão  de  técnica. Não poderia  ha-
ver    falhas. Começaram as  aulas, de clareza  meridi-
ana. Todo mundo entendia. Só que o corpo rejeitava.
Depois de uma aula sobre o cheiro e o gosto bom  da
carniça, podiam se ver grupinhos de passarinhos que
discretamente (para não ofender os mestres) vomita-
vam atrás das árvores. Por mais que fizessem ordem
unida para aprender o gingado do urubu, bastava que
se pilhassem fora da escola para que voltassem todos
os velhos e detestavéis hábitos de andar. E o pavão
e as araras não paravam de  cochichar, caçoando  da
cor dos urubus:  "Preto  é a cor  mais bonita? Uma 
ova..." E assim, as  coisas  se  desenrolaram, de fra-
casso, a despeito dos métodos cada vez mais cientí-
ficos e das estatísticas que subiam. E todos comen-
tavam, sem entender: "A educação vai muito mal..."

UMA IDÉIA A SER EXPLORADA: Para educar bem-ti-
vi  preciso gostar  de bem-ti-vi,  respeitar  seu gosto,
não ter projeto  de  tranformá-lo em urubu. Um bem-
ti-vi  será  sempre um urubu de  segunda  categoria.
    
                 Rubem Alves

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